Pedro A. Batista Martins

1. Consulta; 2. Parecer; 3. Contornos principiológicos que cercam a Lei de Arbitragem; 4. Sentença arbitral nacional e estrangeira; 5. A questão posta e a Convenção de Nova Iorque; 6. A competência do STF para homologar sentença arbitral estrangeira; 7. Conclusão.

1. Consulta

Pelas mãos do ilustre Prof. Amoldo Wald recebemos a consulta transcrita abaixo.

“I. Trata-se de arbitragem regida pelas normas da CCI na qual o ato de missão estabelece que a sede da arbitragem é Nova Iorque e que:

‘IX. Règles de Procédure

[48] La procédure sera celle prévue par le Règlement d’arbitrage de la C.C.I. et le présent acte de mission. Le Tribunal Arbitral pourra, en cas de besoin, compléter ces règles de procédure par ses propres décisions, après consultation des parties.

(…)

XI. Droit Applicable

[50] Le droit applicable au fond est le droit brésilien’.

2. Considerando-se que os arts. 34, par. ún., 35 e 38, VI, da Lei 9.307/1996, estabelecem que:

‘Art 34. (…)

Parágrafo único. Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional.

Art. 35. Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do Supremo Tribunal Federal,

(…)Art. 38. Somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que:

(…)

VI – a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença for prolatada (destacamos).

3. Indaga-se, diante da eventualidade de ajuizamento, no Brasil, de ação de nulidade de sentença proferida em Nova Iorque, se:

1. Os Capítulos V e VI da Lei 9.307/1996 estão reservados, respectivamente, à sentença arbitral nacional e à sentença arbitral estrangeira, de acordo com a definição estabelecida pela Lei de Arbitragem, prevendo, cada qual, tratamentos diversos no que diz respeito ao controle exercido pela jurisdição estatal?

2. Consequentemente, a sentença arbitral estrangeira só pode ser anulada pelo juiz do local em que foi proferida, no caso, Nova Iorque?

3. Pode-se concluir que a Justiça brasileira é incompetente para apreciar ação de nulidade de sentença arbitral estrangeira, proferida em Nova Iorque, na forma do ato de missão?

4 No Brasil, a única autoridade competente para apreciar a legalidade, validade e eficácia da sentença arbitral estrangeira é o STF, no processo de homologação previsto pelo art. 102,1, h, da CF?

5) Há alguma modificação nas respostas aos quesitos anteriores se:

a. tratar-se de sentença arbitral parcial;

b. tratar-se de sentença final, confirmando e tendo como anexo sentença parcial anterior?

6) A aprovação dá Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 altera, de alguma forma, as respostas as perguntas acima colocadas?

2. Parecer

As questões postas a estudo abrangem certa gama de institutos processuais que se correlacionam profundamente com o ramo legal do direito arbitral (i.e. Jurisdição; competência; sentença e seus efeitos), transitam pela seara do direito internacional (i.e. aplicação de atos internacionais) e restam por desembocar em ponto que é muito caro aos próprios pressupostos que impulsionam aqui e alhures o instituto da arbitragem, qual seja, os limites do controle que lhe é, deve e pode ser .exercido pelo órgão judicial estatal.

Cientes de que “nada ocorre no mundo de per se (causa sui); tudo o que acontece, i.e., toda modificação no mundo sensível, é consequência de outra precedente, sem a qual ela mesma não teria surgido”.1 Ao longo deste parecer procuraremos desvendar os pontos relevantes das indagações com a luz focada nos porquê & para quê que movimentam a vontade e fundamentam a finalidade das normas.2

3. Contornos principiológicos que cercam a Lei de Arbitragem

3.1 Não gera mais controvérsia a crise que atingiu (e ainda atinge) a justiça como um todo. Trata-se de crise universal que tem reflexo inquietante nos jurisdicionados porque afeta, diretamente, a administração da justiça e, por isso, a prestação da tutela jurisdicional.3

Essa situação fática tem sido enfrentada mundialmente através da utilização de variados mecanismos que, por força das especificidades de cada cultura e de distintos padrões de desenvolvimento científico e financeiro, se distinguem largamente, mas que, curiosamente em um ponto, harmonizam o enfoque das jurisdições internacionais: o gosto pelo uso dos meios alternativos de solução de conflitos.

Tem sido com a mediação e a arbitragem, carros-chefes de tais instrumentos de resolução de conflitos, que múltiplas jurisdições estatais manejam o grave problema social em que se transformou o direito de acesso à justiça.4

Essa nova onda de enfrentamento da barreira que atinge, sobremaneira, esse direito natural foi apresentada pelo mestre italiano Cappelletti que, em estudo pioneiro sobre o tema, resultado de um extenso relatório formulado para análise

Esse fenômeno é bastante sentido no dia-a-dia através da crescente importância que podemos verificar na atuação das associações de bairro e de classes, da forte intervenção de ONGs de interesse público específico ou abrangente e de esforços de representatividades no esclarecimento e combate a atos arrazoáveis e, até mesmo, na cooperação em tarefas ligadas à própria segurança pública.

Esse fato histórico vem acompanhado de ação efetiva por parte do Estado como confirma a Lei 10.257/2001 (regulamenta os arts. 182 e 183 da CF), que em seu art. 2°, II e III, conclama o povo a cooperar na definição de questões de interesse da coletividade.”5

Essa realidade não passou in albis na seara legal, mais especificamente naquele setor que lhe é muito penoso, o do acesso à justiça. Aliás, aqui já podíamos sentir esse padrão de concluía estatal com a ampliação da participação privada na busca da tutela jurisdicional, com a introdução dos institutos da ação popular e da ação civil pública, e na tarefa maior de dizer o direito (indicium) através do Tribunal do Júri.

Atualmente esse paralelo se encontra presente na promulgação da Lei de Arbitragem e na introdução de seus efeitos em uma importante gama de legislações nacionais, de variados objetos6, e nos estudos e projetos que se desenvolvem sobre mediação.

A justificação encaminhada ao Congresso Nacional juntamente com o projeto que redundou na Lei 9.307/1996 assim se manifestou no título Acesso à justiça e arbitragem:

“A arbitragem é instituto utilizado para solução de controvérsias desde os tempos mais remotos e, em última análise, consubstancia a participação do povo na administração da Justiça, à semelhança do que já ocorre com o Tribunal do Júri.

O Estado, atento à necessidade de desenvolver outros foros para a pacificação social e para a solução de controvérsias, patrocinou, na última década, a criação dos Juizados Informais de Conciliação e dos Juizados Especiais de Pequenas Causas; após a Constituição de 1988, várias unidades da Federação instituíram os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, tendo como escopo agilizar os processos e facilitar o acesso à justiça.

Agora, é necessário criar um foro adequado às causas envolvendo questões de direito comercial, negócios internacionais ou matérias de alta complexidade, para as quais o Poder Judiciário não está aparelhado. É neste contexto que a arbitragem surge como excelente e insuperável alternativa para a solução de litígios, funcionando ainda para descongestionar os órgãos jurisdicionais estatais, excessivamente sobrecarregados, na esteira do que vem ocorrendo nos mais diversos países, especialmente europeus e sul-americanos”.

Como tivemos a oportunidade de referir, “já é momento de liberarmos a sociedade dos dogmas passados e paternalistas onde sobrepujava o Estado-Providência para que o indivíduo adentre, com direitos e deveres, o campo da liberdade onde se aflora a autonomia da vontade. Até porque o Estado contemporâneo desenvolve-se com a cidadania exercida por seus nacionais e a participação destes nos destinos sociais, inclusive no que tange à administração da justiça“.7

3.2 Como dito anteriormente, a arbitragem, para ser revitalizada, precisou antes passar por um processo de modernização, haja vista que as normas pretéritas que pretenderam introduzida em nosso ordenamento legal, na prática, acabaram por inviabilizá-la.

Daí a importância da roupagem jurídica concebida pela Lei 9.307/1996, também conhecida como Lei Marco Maciel, para o enfrentamento das questões arbitrais, notadamente daquelas postas ao presente exame,

Ponto de partida e pressuposto de existência do próprio instituto é a ampla liberdade conferida às partes. Sustenta-se na autonomia da vontade a utilização desse meio de solução de conflitos desde seus mais remotos tempos. Não é sem razão que já foi dito consubstanciar a arbitragem um campo de liberdade. Nesse sentido, a própria justificação do projeto convertido na Lei Marco Maciel, ao tratar das Linhas mestras do projeto de lei, fez questão de registrar que “antes de mais nada, prestigiou-se o princípio da autonomia da vontade (…)“.

Essa autonomia no exercício das faculdades jurídicas é voz comum na doutrina arbitral. Sintetizando a communis opinio doctorum, citamos, por todos, Roque J. Caivano: “En definitiva, el arbitrage voluntário no es sino una expresión dei principio de la autonomia de la voluntad (…)8

É a liberdade, pois, veículo propulsor da arbitragem e que há de ser absorvida pelo intérprete e aplicador do direito preliminarmente à análise do instituto e de seus consectários legais. Afinal, o texto normativo desgarrado de seus princípios norteadores e da matéria-prima que lhe confere sentido nada revela; não passa de mera peça abstrata, sem alcance científico para o intérprete.

Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico não expressa significado normativo algum.9

A autonomia da vontade, corolário da liberdade, impulsiona a arbitragem desde seu nascedouro. Afigura-se como um espaço de manifestação volitiva desimpedida, desfreada, mas há de ser encarada em suas devidas e justas medidas. Queremos dizer que a expressão desse autogoverno jurídico encerra um duplo sentido que toca o interessado: é um poder-dever.

Ao mesmo tempo em que tem a faculdade (poder) de escolher as regras de direito aplicáveis (v.g. o local da sede da arbitragem e o árbitro da causa) de outro, tem a obrigação (dever) de respeitar os efeitos dessa livre manifestação volitiva.

Subsume-se, impreterivelmente, aos consectários que sua livre vontade venha acarretar. Daí por que a revolta contra os resultados originados de sua própria vontade por força de indesejáveis repercussões jurídicas deve ser afastada e coibida, pois afeta a segurança das relações contratuais e viola a boa-fé que norteia os negócios e os atos jurídicos e, com certeza, muito se aproxima do combatido venire infactum próprio.

3.3 Nessa linha, podemos inferir que, internamente, sob a estreita ótica do patrimônio jurídico do interessado, a autonomia da vontade se projeta em duas vertentes aparentemente antagônicas: como poder, em sua modalidade agressiva (de dentro para fora), e como dever, em sua modalidade invasiva (de fora para dentro).

No que toca à esfera externa, do contato dos interesses do indivíduo com aqueles da coletividade e, por isso, vinculados à ordem pública, esse princípio de direito encontra limites precisos que reprimem o poder de seu titular.

Essa repressão se expressa pela atuação do Estado na coibição de abusos de direito e de violação de regras de conduta, enfim, no controle de pressupostos basilares. É o caso da ineficácia da cláusula compromissória nos contratos de adesão, da nulidade das convenções de arbitragem que estipulem objeto ilícito ou resultem em pedido juridicamente impossível ou cuja nomeação dos árbitros perpetre abuso ou arbitrariedade.

Da mesma forma que o controle estatal atua na imposição de limites ao poder individual, ainda em sua esfera externa age na coerção do dever não cumprido. São duas, pois, as dimensões desse controle: uma que estabelece limites e outra que exige obediência ao dever resultante do exercício de liberdade volitiva.

Nas duas dimensões verifica-se um facere negativo, desconstitutivo da vontade pretendida pelo interessado. Seus efeitos atingem a pretensão do indivíduo para coibi-la.

Note que ainda surge no campo da arbitragem uma terceira dimensão de atuação estatal ligada ao controle ativo – facere positivo – que a ordem arbitral reclama do órgão judicial. São exemplos à imposição de medidas cautelares e preparatórias e a condução de testemunhas.

Essa ação estatal se acentua no combate a atividades que não se coadunam com a boa-fé, a atos de emulação e com os preceitos que norteiam o direito. Estamos diante do rompimento de pacto arbitral, da desconstituição emulativa de atos processuais arbitrais, inclusive dos efeitos da sentença, e do impedimento inominado do exequatur em homologação de decisão estrangeira.

Esse agir estatal há de estar sempre muito presente, pois se há algum ramo do direito em que a autonomia da vontade prepondera e, por isso, deve sempre ser respeitada, é justamente na arbitragem. Dela nasce o próprio instituto e as relações jurídicas que lhe dão efeito. Esse direito-poder vem acompanhado de um dever que não pode ser subvertido sob pena de violação e forte atingimento do patrimônio jurídico da parte prejudicada.

A livre condução dos termos contratuais e as desimpedidas e válidas opções formuladas pelo contratante hão de ser respeitadas, pois expressam os direitos pactuados no campo de liberdade em que trafega o instituto da arbitragem.

Nesse sentido, a escolha da sede do tribunal arbitral e da lei processual aplicável é acordo de desdobramentos marcantes para as partes e para o próprio processo arbitral, pois informa o local do controle estatal, durante o processo (facere positivo) e após seu término (facere negativo). Toca, pois, a eficácia da decisão que põe termo à disputa. Diz a extensão desse controle e, por isso, é muito caro às partes, aos árbitros e ao iudicium.

Essa liberdade que inspira a autonomia da vontade deve ser trabalhada com a devida responsabilidade que todo direito reclama. A livre escolha gera às partes maior responsabilidade em face das decisões e opções por elas deliberadas.

4. Sentença arbitral nacional e estrangeira

4.1 O legislador brasileiro não tratou especificamente da arbitragem internacional como gostariam alguns estudiosos do tema. Ao contrário, procurou estabelecer uma dicotomia de efeitos da sentença arbitral.10 Para tal qualificou a sentença segundo critério objetivo: o da territorialidade.

É o que se extrai do contido no par. ún. do art. 34 da Lei Marco Maciel, verbis:

“Art. 34. (…)

Parágrafo único. Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional”.

A contrario sensu, tem-se por nacional a sentença prolatada no território brasileiro.

Note que essa técnica legislativa não é estranha ao direito. Como esclarece Piero Bernardini, “questo critério di identificazione delia nazionalità di una deci-sione [stranieri e nazionali] è da ritenere ormai generalmente accolto daí legisla-tori nazionali [o autor cita Itália e Alemanha] ed è recepito dalla legge modello. Lo stesso critério è adoítato, sosíanzialmente, anche dalla Convenzione di New York dei 1958 – sempre ché il luogo dove la sentenza è resa’ ex art. l.l si identifichi com Ia sede delarbitrato (…)“.11 Com essa qualificação da sentença inferimos a existência de uma arbitragem interna e outra estrangeira, mas não se afasta a possibilidade de se encontrar implícita a arbitragem internacional mesmo porque a arbitragem estrangeira pode ser de índole internacional.

Essa distinção entre sentença nacional e estrangeira e sua determinação pela territorialidade, ou seja, pelo local de sua proteção tem por mérito a definição pelo legislador a priori do órgão de controle (jurisdição) do juízo arbitral e da sentença por ele proferida, bem como do próprio órgão judicial competente para o seu exercício.

Conquanto a vontade das partes deva ser sempre sopesada, o fato é que na ausência de sua manifestação a lei brasileira se antecipou e da o norte a orientar o contato da jurisdição estatal com a jurisdição arbitral.

4.2 E o que estabelecem os Capítulos V e VI da nossa Lei de Arbitragem ao tratarem distintamente das sentenças prolatadas nos territórios nacional e estrangeiro.

Por óbvio, alguns dos dispositivos atinentes ao Capítulo V aplicar-se-ão à decisão arbitral estrangeira, como os requisitos obrigatórios constantes do art. 26, se referida decisão vier a ser objeto de homologação no Brasil.

Por força expressa da lei de arbitragem e de sua clara opção pelo princípio da territorialidade, proferida a decisão no Brasil, os efeitos desse ato jurisdicional caem na esfera nacional e aqui devem ser enfrentados.

Nesse particular faz-se presente a consequência processual da lei de arbitragem, que, ao tratar como nacional a sentença arbitral prolatada em território brasileiro, remete sua análise e controle ao judiciário de origem.

Essa sistemática legal, aliás, não inova e, por isso, não surpreende, haja vista ser resultado da exigência de registro na sentença do lugar onde foi proferida (art. 26, IV) e do tratamento nacional conferido à decisão arbitral. Se é brasileira, será em nosso território o exercício do controle judicial. Obviamente, por órgão judicial nacional.

Por via de consequência, será no Brasil que o interessado deverá buscar a nulidade da sentença, nos moldes e no prazo que expressa a Lei Marco Maciel.

É justamente isso o que determina o caput do art. 33: “A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença arbitral nos casos previstos nesta lei“.

Essa competência diz com os limites da jurisdição interna brasileira.

Registre-se a minúcia em que se ateve o legislador. Não bastou fixar a jurisdição, mas lembrou ao jurisdicionado de buscar a pretensão no órgão judicial competente,

A. jurisdição é entendida como expressão da soberania do Estado, tem ela a mesma extensão dessa soberania; que, tendo caráter nacional, encontra limite internacional na coexistência de outros Estados. Já a competência pertine à pluralidade dos órgãos judiciais nacionais e, por isso, diz respeito à delimitação da jurisdição interna do Estado.12

Entendidos esses conceitos, vemos que o legislador fixou a jurisdição nacional para o desempenho do controle judicial e permitiu ao interessado fixar a competência interna para o exercício da tutela jurisdicional.

Entretanto, na ausência de manifestação expressa de vontade, aplica-se a lei processual e de organização judiciária nacional.

Interessado em alcançar a desconstituição dos efeitos da decisão arbitral, o requerente deve observar onde ela foi proferida para, no território de origem (i.e, de prolação da decisão), buscar a tutela jurisdicional apropriada ao sistema legal-processual competente.

Daí a importância e imperatividade de constar da decisão, ao lado do relatório, dos fundamentos e do dispositivo, o lugar em que foi prolatada, ex vi, art. 26, IV, da Lei Marco Maciel.

Sendo de nacionalidade brasileira, deverá a ação de nulidade ser aqui proposta perante o órgão do Poder Judiciário competente (art. 33, caput), aplicando-se à demanda o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil, ex vi, art. 33, § 1°, da Lei de Arbitragem.

E o que sustentam Joel Dias Figueira Júnior, “para que se instaure a ação anulatória, deverá o interessado dirigir-se ao órgão competente do Poder Judiciário e propor a demanda nos moldes do art. 282 do CPC, podendo obedecer ao procedimento comum ordinário ou sumário, dependendo apenas da complexidade da matéria probatória ou do valor da causa13, e Paulo Furtado e Uadi Lamêgo Bulos, “quando se refere ao ‘órgão competente do Poder Judiciário’, quis o legislador, evidentemente, reportar-se ao ‘juízo competente’ para conhecer da ação, se esta houvesse sido proposta, e, por conseguinte, ao juízo competente para a homologação do laudo arbitral, se este ainda existisse (já não existe, porque hoje é ‘sentença’), e a homologação fosse necessária (não é mais). De forma que os critérios para a determinação da competência, previstos no Código de Processo de Civil, orientam a situação (…)“.14

Em suma, tendo sido proferida a sentença em território brasileiro, será caracterizada por força legal como sentença nacional e competirá ao Poder Judiciário local o exercício do controle de seus efeitos, ao menos em um primeiro plano, visto que sua execução ou reconhecimento em outra jurisdição restará por alcançar o controle do judiciário estrangeiro, como adiante veremos no caso inverso das sentenças arbitrais estrangeiras.

Em favor do Estado que acolhe, em seu território, a instauração do tribunal arbitral, apresenta-se o interesse de zelar pela qualidade da prestação jurisdicional ali desenvolvida, cuja administração se deve vigiar de perto. Em favor do estado da homologação, vislumbra-se o interesse em não emprestar o concurso do poder de imperium de seus juízes à execução de uma sentença arbitral eventualmente incompatível com os ideais de justiça nele vigentes,15

4.3 Em linha com a sistemática lógica adotada pela lei de arbitragem, sendo a sentença prolatada fora do território nacional, será tida como sentença estrangeira, ex vi, art. 34, par. ún.

Dessa forma seus efeitos legais transitam por caminhos distintos daqueles aplicáveis à sentença nacional, É no território do local da arbitragem que o interessado deverá dirigir-se para buscar o concurso do Judiciário no controle da atividade arbitral.

O legislador nacional utilizou o mesmo peso e a mesma medida tanto para a sentença arbitral estrangeira quanto para a nacional ao traçar o contato da jurisdição estatal com a jurisdição arbitral. Tudo depende da nacionalidade da sentença. Em outros termos, o controle judicial tem como pré-requisito a verificação da territorialidade da decisão.

O controle caberá ao Judiciário do local da prolação da sentença. É lá, em seus meandros territoriais, que o processo arbitral se desenvolveu; é lá, em sua jurisdição, que o conflito foi posto, pelas próprias partes, à análise e decisão do juízo arbitral; é lá, em seu espaço territorial, que sua competência interna foi afastada, pelas próprias partes, em prol da jurisdição arbitral; é lá, portanto, que o controle far-se-á prima fade. Afinal, é reflexo da soberania da jurisdição indicada para dar guarida ao dictum arbitral o exercício pelo Judiciário local do controle de legalidade sobre os efeitos da atividade arbitral cuja sentença, proferida em seu território, ditou o direito.

Daí podemos concluir que a faculdade (poder) de livre escolha pelas partes do território onde se prolatará a sentença arbitral traz para elas, em contrapartida, o dever de submeter o controle da sua legalidade ao juízo estatal da jurisdição escolhida para albergar o processo arbitral, já que é ele (órgão do Judiciário local) competente para controlar todas as decisões emanadas em seu território, sejam elas administrativas, judiciais ou arbitrais.

Essa sistemática legal é lógica e, acima de tudo, isonômica, pois atinge igualmente a sentença nacional e a estrangeira.

E é isso o que expressa a dinâmica legal do instituto em linha com o critério da territorialidade adotado pela Lei de Arbitragem.

Nos termos do art. 38, VI, temos que “somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou a execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que:

VI – A sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, lenha sido anulada, ou, ainda, lenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada“.

Extraem-se desse texto, normativo duas conclusões objetivas; uma que a eficácia da sentença arbitral é conditio iuris para a outorga do exequatur pelo STF, e, duas que a lei brasileira de arbitragem conferiu nítida jurisdição (competência internacional) à corte judicial do local de emissão da decisão para o exercício do controle de vícios de nulidade.

E o que se infere do retro citado art. 38, VI, ao sujeitar àquele que pretenda contestar a validade e eficácia da sentença arbitral estrangeira, em sede de homologação, o ônus da prova de sua anulação ou da suspensão de seus efeitos por órgão judicial do país onde a sentença arbitral foi proferida.

A lei brasileira de arbitragem, em linha com os princípios que norteiam o juízo arbitral, inverteu o ônus da prova ao impor ao réu (ou seja, aquele que nega cumprimento ao decisum) a obrigação de demonstrar que a sentença foi anulada ou teve seus efeitos suspensos no país de origem.

Infere-se, ademais, que referido dispositivo, por outro lado, impôs ainda à parte renitentes iniciativa da propositura, na jurisdição de origem, de medida judicial visando a desconstituição dos efeitos da decisão arbitral como condição para a oponibilidade dessa exceção ou de sua inobrigatoriedade em sede de juízo de delibação.

Para alegar, deve provar; para provar, deve demonstrar o exercício da ação de nulidade perante o órgão judicial onde foi proferida a decisão.

Como já dito anteriormente, essa lógica não inova e tampouco discrimina; ao contrário, traça os mesmos contornos jurídicos de controle judicial tanto para a sentença nacional quanto para, a estrangeira. Tal isonomia atinge, pois, as duas dimensões resultantes do critério da territorialidade adotado pela lei de arbitragem. Repita-se: os efeitos da sentença arbitral estrangeira submetem-se ao controle do órgão judicial do país de origem, como resulta claro do art. 38, VI, in fine.

É o que afirma J. E. Carreira Alvim: “Só deve ser homologada a sentença que, segundo a lei da sua nacionalidade, tenha se tornado obrigatória para as partes. Destarte, se a lei da sentença permitir recurso com efeito suspensivo, pouco importa que, pela lei brasileira, ela não seja recorrível; há de ser observada a lei do lugar onde ela foi proferida. Da mesma forma, se a sentença arbitral tiver sido anulada, ou tiver sido suspensa por órgão do Poder Judiciário do lugar da sua prolação, não terá eficácia bastante para ser homologada, devendo esta ser negada até que se comprove poder a sentença ser executada“.16

Por sinal, essa sistemática adotada pelo legislador, na verdade, brota das normas jurídicas que compõem nosso ordenamento legal e com elas se amálgama. Aliás, a hermenêutica somente preza valor se a norma retirada do texto normativo se concilia com as regras e os princípios de direito que com ela tocam, embrincam e, harmonicamente, convivem.

Nesse sentido, ao analisarmos a natureza do processo de homologação das sentenças oriundas do exterior, a outra conclusão não chegará o intérprete que não a inviabilidade jurídica do controle judicial brasileiro da decisão arbitral proferida fora do seu território (exceto em sede de homologação pelo STF).

Isso porque a decisão que acolhe o pedido de homologação de sentença estrangeira, seja qual for a natureza desta, é constitutiva: cria situação jurídica nova, caracterizada pelo fato de passar a sentença homologada a produzir no território brasileiro, total ou parcialmente, os efeitos que lhe atribua o ordenamento de origem. A decisão que rejeita o pedido de homologação, por falta de um ou alguns dos requisitos de homologabilidade, é naturalmente declaratória negativa.17

A bem da verdade, o que se quer com o juízo de delibação é a confirmação da validade e da legitimidade da decisão alienígena como ato jurisdicional capaz de irradiar eficácia no território brasileiro.

O que se quer é importar a eficácia estrangeira, daí por que assevera Pontes de Miranda que é “o estado de importação que tem de dizer se a eficácia é sentencial e se é de mister a homologação“.19

A ação de homologação colima obter a introdução da eficácia da sentença estrangeira dentro do país. Tal ação é, portanto, constitutiva integrativa. Porque a importação da eficácia depende de ato integrativo, que é a homologação da sentença estrangeira.19

Enfim, como pontua J. C. Barbosa Moreira, “aquele que requer a homologação da sentença estrangeira pretende, sem dúvida, um bem, que consiste na atribuição de eficácia sentenciai, no território brasileiro, à decisão alienígena, sem a qual não poderá o requerente fazê-la valer no Brasil” 20 (grifamos).

Entendida, pois, a natureza jurídica do processo de homologação como um ato de legitimação da decisão estrangeira a permitir seja introduzida em território nacional toda a força de sua eficácia e que, sem essa chancela, nada vale, nenhum efeito de direito produz no Brasil, forçoso admitir que a sentença arbitral proferida no exterior deverá lá, alhures, ser desconstituída já que aqui nada resulta, nada produz de concreto. Até sua internalização no mundo jurídico nacional, a sentença arbitral é, para nós, uma desconhecida.

Queremos com isso dizer que a pretensa ação em território brasileiro que vise a nulidade de uma sentença proferida no estrangeiro não guarda qualquer coerência com as regras jurídicas que cercam nosso sistema de direito, pois tal sentença, para fins internos, de nossa competência e jurisdição, ainda não existe no plano da eficácia, nada irradia no mundo do direito, pois sua eficácia sentenciai fica a depender, regra geral, antes e acima de tudo, do juízo de delibação de competência do STF.

Sem a homologação prévia a sentença arbitral não gera efeitos de direito interno, o que resulta inoperante a propositura de uma ação, em território brasileiro, que vise a sua nulidade. Ação essa, ademais, de natureza eminentemente constitutiva negativa.

Em outro diapasão, se os efeitos da sentença arbitral estrangeira ainda não foram importados e, consequentemente, aqui ainda não é ela objeto de qualquer eficácia, de todo inócua uma ação de nulidade que vise a desconstituir um ato jurisdicional cuja eficácia ainda não foi incorporada – importada – ao nosso mundo jurídico.

Se ainda não existe para o nosso direito, nada há para desconstituir. Ou muito bem exerce o interessado a pretensão de aqui obter a eficácia sentenciai da decisão estrangeira, e, aí então, surge para a outra parte a faculdade para contestá-la, ou muito bem exercita o prejudicado seu direito de anular os efeitos da sentença no local onde particularmente já irradia eficácia.

E esse o sentido que empresta a Lei de Arbitragem em fina sintonia com a natureza do processo de homologação de sentença estrangeira (importação da eficácia sentenciai) e com a força jurídica da sentença homologatória (constitutiva integrativa).

E essa, pois, a concretude que atesta o intérprete do sistema legal arbitral, haja vista o teor literal do texto normativo e a linguagem jurídica que dele se extraem, os quais, por seu turno, se encaixam coerentemente nos demais preceitos de direito que lhe tocam numa evidente interpretação lógico-sistemática do art. 38, VI, da Lei Marco Maciel.

5. A questão posta e a Convenção de Nova Iorque

5.1 Recentemente foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico a Convenção de Nova Iorque (“convenção”), ato internacional dos mais prestigiados no cenário mundial. Essa Convenção, que dispõe sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, na pratica já havia sido, em grande parte, introduzida em nossa legislação por força do Capítulo VI da Lei de Arbitragem,

Nos termos da justificação que acompanhou o Projeto da nossa Lei de Arbitragem, “para obviar tal problema, competirá ao STF, no procedimento de homologação, observar os requisitos específicos previstos na lei e, supletivamente, as normas do código de processo civil referentes a homologação de sentença estrangeira, cumprindo observar que, entre as causas obstativas do reconhecimento e execução de sentença arbitral estrangeira, estão incluídas, basicamente, aquelas também constantes da Convenção de Nova Iorque (J958) e do Panamá (F975) (grifamos).

No caso que pertine à questão posta, uma pequena nuance alterou o conteúdo do art. 38, VI, da Lei Marco Maciel. Entretanto, como veremos, essa modificação que se inseriu em nosso sistema legal, com a formal aceitação da convenção, em nada afeta as conclusões até aqui expostas21; ao contrário, com elas alinha-se, pois tem origem (por isso as reforça) na plena manifestação da vontade. Volição essa que, como já salientado, incorpora um poder-dever ao patrimônio do interessado.

De fato, o art. V, l, e da Convenção, ao repetir o art. 38, VI, da Lei de Arbitragem, dele difere pela possibilidade que faculta às partes a escolha da lei processual de outro país, que não a do local da prolação da decisão.

Eis, em negrito, a nuance referida: “O reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da parte contra a qual for invocada, se esta parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova: (…) e) de que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida“.

Quer isso dizer, simplesmente, que, pelas regras da convenção, as partes têm a liberdade de escolher outro país, que não o da prolação da decisão arbitral, em cuja jurisdição poderá desafiar a validade e legitimidade da sentença proferida pelo juízo arbitral.

Saímos da unicidade do princípio da tem tonalidade para um sistema misto, em que a imposição legal da territorialidade pode ser afastada pela escolha das partes de outra legislação processual.

Esse dispositivo da convenção está coerente com a essência libertária do instituto e abre mais uma oportunidade para a manifestação volitiva que os interesses requeiram na conformação das relações jurídicas internacionais.

Daí a elasticidade conferida pela convenção à autonomia da vontade de modo a possibilitar às partes, de comum acordo, a escolha da lei processual aplicável à arbitragem e, por via de consequência, à jurisdição em que a decisão proferida poderá ser desafiada.

Uma breve consulta à doutrina internacional, afeita em demasia a essa convenção, que vige desde 1958, assegura o que antes se afirma.

Sustentam Fouchard, Gaillard e Goldman, “the convention clarifíes its perception of the connection of awards to legal systems by establishing a rule regarding jurisdiction over actions to set aside. Only the Courts of the seat of the arbitration, or those of the country the law of which governed íhe arbitration (in other words, the law chosen by the parties to govern the arbitral procedure), are entitled to retain jurisdiction to set an award aside“,22 e Piero Bernardini, “si fà riferimento ai motivo in virtù dei quale riconoscimento ed esecuzione delia sentenza arbitrale sono rifíutati se questa è stata annullata da una autorità competente dei paese nel quale, o secundo la legge dei quale, la sentenza è stata reza’ (art. V, l,e). In base a tale motivo di rifiuto, quindi, l’annulamento ad opera dell’autorità competente, quale identificata dalla norma, fà perdere alia sentenza arbitrale il benefizio delia sua esecuzione ai sensi delia Convenzione“.23

6. A competência do STF para homologar sentença arbitral estrangeira

6.1 Alguns críticos da lei de arbitragem veem no seu art. 35 um excesso normativo ou, até mesmo (sic!), uma inconstitucionalidade. Alegam que o legislador extrapolou ao conferir ao STF desnecessária, quiçá inadequada, competência para homologar decisão arbitral estrangeira.

Ledo engano! Tais afirmações não passam de ilações desprovidas de sentido jurídico e de técnica interpretativa. Na verdade são fruto de uma enorme ginástica jurídica que não se sustenta ao menor confronto com a origem histórica do referido dispositivo arbitral, com a regra constitucional que rege a matéria e, ainda, com a própria prática do STF no trato da homologação das sentenças estrangeiras.

Vejamos o que dispõe o art. 35 da Lei Marco Maciel: “Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do STF“.

No contexto da linguagem legal enganam-se aqueles que emprestam sentido a esse artigo de conferir ao STF competência para a homologação de decisão arbitral proferida no exterior.

Não é esse o ponto que a norma pretende atingir. Em outras palavras, não é essa a finalidade da norma; não é esse o valor que procura proteger; não é esse o bem jurídico que visa acomodar.

De fato, não é esse o sentido expressado pelo texto. Como alerta Eros Grau, o significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa.24 E a interpretação, para ser acurada e, por isso, respeitada, deve levar em consideração o porquê e o para quê frutos da dinâmica legislativa25 e que, no presente caso, restarão por demonstrar que o significado do art. 35 retro citado, sua teleologia, se encontra no seu nódulo central, no seu dizer restritivo, no seu conteúdo assecuratório de uma unicidade de processo homologatório e, nunca, em tempo algum, no campo da competência; a simples menção à sujeição da sentença arbitral estrangeira à homologação pelo STF é dado textual eminentemente lateral inserido no contexto normativo como moldura à verdadeira finalidade do dispositivo.

Pois bem, como já tivemos a oportunidade de manifestar, até o advento da Lei 9.307/1996, a homologação da sentença proferida pelo árbitro era condição para que produzisse, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença judicial. Tal era necessário, pois, no sistema legal anterior à Lei Marco Maciel, o laudo não continha valore di sentenza passata injudicato, que várias legislações estrangeiras, como a alemã, já contemplavam. Nesse sentido, a solução da pendência submetida à arbitragem, de acordo com a regra do Código de Processo Civil, até então vigente, não se esgotava com a sentença proferida pelo árbitro, pois duas fases faziam-se sentir: a que resultava da assinatura do compromisso, que correspondia à análise e decisão da controvérsia pelo juízo arbitral e a outra, que redundava da lei, que consubstanciava a homologação do laudo pelo juiz togado.26

Nos casos de laudo prolatado no exterior, a exigência homologatória doméstica impunha, no entender do STF, a mesma sistemática imposta ao laudo produzido no Brasil: isto é, necessidade de homologação pelo Poder Judiciário, notadamente o órgão estatal de origem.

Nesse sentido, anteriormente à Lei 9.307/1996, além dos requisitos essenciais à homologação da sentença arbitral estrangeira, existiu um outro imposto à parte requerente, em razão do entendimento jurisprudencial acolhido pelo STF, vale dizer, a prévia homologação, pelo juízo estatal do país de origem, do laudo arbitral proferido no exterior.27

Esse entendimento se originava de uma certa legislação do século XIX que previa a faculdade de se homologarem decisões arbitrais homologadas por tribunais estrangeiros.28

Assim, para que o detentor de laudo arbitral alienígena viesse a ter seus direitos internalizados no Brasil, era necessário obter, previamente à homologação no STF, a chancela do Poder Judiciário do país de origem; isto é, o Brasil adotava a indesejada sistemática da dupla homologação. Chancela estatal no país de origem e chancela estatal no país de destino.

Afora o fato do despropósito jurídico e prático de uma fase de delibação prévia à outra fase homologatória, o critério da dupla homologação acabava colocando por terra duas das vantagens da arbitragem, isto é, a celeridade e a confidencialidade.

Por essas razões tal sistemática, repita-se, dupla homologação, foi alvo de intensa crítica dos juristas e restou por consubstanciar, juntamente com a ineficácia da cláusula compromissória, em grave entrave ao desenvolvimento do instituto da arbitragem no Brasil.

Leia-se, a respeito, manifestação do Des. Cláudio Vianna de Lima:

l. A nova Lei de Arbitragem do Brasil

I.1 Sentido das inovações

No trato da matéria do texto – ‘Reconhecimento e execução de laudos’ -examinando a normativa nacional e internacional, há de se ter presente a nova Lei de Arbitragem do Brasil (Lei 9.307, de 23.09.1996), com as inovações que trouxe mais diretamente refletidas no objeto da exposição. Não se pode deixar de referir o sentido claro das reformas do sistema legal em apreço: eliminar todos os fatores das normas até então vigentes que foram dos mais poderosos obstáculos à implantação e desenvolvimento não apenas da arbitragem como das demais alternativas de solução pacífica dos conflitos de interesses e, também, entraves à própria instituição de uma cultura arbitral no país. Buscou-se, em suma, retirar o Brasil da indesejada condição de ilha de resistência à arbitragem, na companhia de nações muito menos desenvolvidas como situou o douto jurista francês René Dávid, buscando ultrapassar décadas (ou séculos?) de atraso“.29

Daí a preocupação do legislador em atacar expressamente esse antigo obstáculo; e o fez claramente para as sentenças produzidas no Brasil quanto para aquelas emanadas no exterior.

Quanto às decisões domésticas, rege o art. 18 que “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário” (grifamos).

E, no que toca às decisões estrangeiras, dispõe o art. 35 que “para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do STF” (grifamos).

Está aí a concisa teleologia da norma contida no texto do art. 35 da Lei de Arbitragem: submete-se, unicamente, a homologação pelo STF a sentença arbitral produzida no exterior.

O legislador, atento ao histórico entrave que a dupla homologação causava ao desenvolvimento da arbitragem no Brasil, resolveu por bem expungi-lo com a introdução de texto normativo expresso ex vi, art. 35 da Lei 9.307/1996.

Essa finalidade legislativa, por sinal, também foi aferida por Joel Dias Figueira Júnior, a saber:

A competência para a homologação de sentença estrangeira é privativa do STF (art. 102, l, h, da CF), sendo esta a única exigência para sua execução no Brasil após o advento da Lei 9.307/1996, que, finalmente, extirpou o retrógrado requisito da ‘dupla homologação’ (art. 35)“.30

Vistos o porquê (grave obstáculo ao implemento do instituto da arbitragem) e o para quê (eliminação da dupla homologação), podemos concluir que o art. 35, ao estabelecer que a sentença arbitral estrangeira, para obter o exequatur no Brasil, fica a depender, unicamente, da homologação pelo STF, se completa com – à finalidade de afastar a homologação estatal estrangeira (completude da norma) e, assim, operar agilidade ao instituto da arbitragem ou, em outros termos, dar a ele efetividade.

Essa conclusão, acima de tudo, é lógica e sistemática, pois está coerente com o próprio texto constitucional Este sim (e não a Lei 9.307/1996) é que confere competência ao STF para homologar as sentenças estrangeiras. O legislador da Lei de Arbitragem não podia, não devia e, por isso, não adentrou em seara de há muito dominada pelo constituinte.

E lá, no contexto constitucional, que o STF alberga sua competência para exercer o judicium homologatório.

Segundo J. E. Carreira Alvim, “a sentença estrangeira sempre foi reconhecida pela ordem jurídica interna, dependendo a sua eficácia, no território nacional, de homologação do STF, conforme art. 102, i, h, da CF. Esse reconhecimento e exequibilidade, agora expresso na Lei 9.307/1996, têm, pois, entre nós, fundamento constitucional, como sempre teve nas anteriores Constituições brasileiras“.31

Se o art. 102,1, /z, da CF assegura ao STF competência para julgar e processar, originariamente, a homologação das sentenças estrangeiras, a norma do art. 35 da Lei Marco Maciel, para aqueles que entendem conferir a competência homologatória de decisão arbitral estrangeira à Corte Suprema, contemplaria uma inútil redundância ou um enorme vazio jurídico, pois estaria a repetir ditame constitucional e, assim, seria ela de todo inoperante e descabida.

Segundo Pontes de Miranda, “na expressão ‘sentenças estrangeiras’ compreendem-se todas as decisões judiciais que precisam ter eficácia alhures, desde que decisão cível, ou com eficácia de decisão cível. Incluem-se as decisões arbitrais e as de autoridades administrativas, se têm eficácia cível“.32

Mas como o texto legal, por suposto, não deve trazer inutilidades, e, por certo, a Lei Marco Maciel não peca por essa inadequacidade, forçoso ao intérprete concluir que o resultado almejado pela norma visa atingir, unicamente, a barreira da criticada dupla homologação, e somente isso.

Enquanto a Constituição Federal fixa os limites da competência do STF, o texto infraconstitucional trata, propriamente, do tema da dupla homologação, para desprezá-la,

7. Conclusão

Diante de todo o exposto, podemos concluir que a análise das indagações formuladas, em sintonia fina com as pautas de hermenêutica,33 transitou (i) pelos princípios que norteiam o instituto da arbitragem (v.g. autonomia da vontade; poder-dever), (ii) pela sistemática do direito como um todo (v.g. natureza do processo de homologação; competência constitucional), (iii) pela história e gênese do instituto (v.g. obstáculos; justificação do projeto) e (iv) pela finalidade do direito (v.g. distinção entre sentença arbitral estrangeira e nacional e consequente normativa quanto ao controle judicial de sua nulidade; eliminação da dupla homologação), e restou por dar guarida às questões apresentadas, nos moldes que ora propomos.

1) Os Capítulos V e VI da Lei 9.307/1996 estão reservados, respectivamente, à sentença arbitral, nacional e à sentença arbitral estrangeira, de acordo com a definição estabelecida pela Lei de Arbitragem, prevendo, cada qual, tratamentos diversos no que diz respeito ao controle exercido pela jurisdição estatal?

Sim, os Capítulos V, e VI da Lei Marco Maciel impõem dicotomia no tratamento legal, em linha com a distinta definição que estabeleceram para as sentenças arbitrais nacionais e estrangeiras. O princípio que impera é o da territorialidade e que implica, também, a fixação da jurisdição estatal passível do exercício do controle da legalidade de decisão arbitral.

Proferida no exterior, é o órgão do Poder Judiciário do local de origem que detém jurisdição para julgar pedido de nulidade da decisão prolatada em sede arbitral.

2) Consequentemente, a sentença arbitral estrangeira só pode ser anulada pelo juiz do local em que foi proferida, no caso, Nova Iorque?

Correto. Mesmo porque seus efeitos ainda não se irradiam em nossa jurisdição, já que é a homologação pelo STF que importará a eficácia sentenciai.

3) Pode-se concluir que a Justiça brasileira é incompetente para apreciar ação de nulidade de sentença arbitral estrangeira, proferida em Nova forque, na forma do ato de missão?

Sim. A Justiça brasileira não tem jurisdição (competência internacional} para apreciar ação de nulidade de sentença arbitral estrangeira.

4) No Brasil, a única autoridade competente para apreciar a legalidade, validade e eficácia da sentença arbitral estrangeira é o STF, no processo de homologação previsto pelo art. 102, l, h, da CF?

Não há dúvida de que o STF retém competência para julgar e processar, originariamente, a homologação das sentenças estrangeiras, inclusive aquelas emanadas de juízo arbitral, por força de dispositivo constitucional.

5) Há alguma modificação nas respostas aos quesitos anteriores se:

a) Tratar-se de sentença arbitral parcial

Não. Inexiste modificação no entendimento anterior. Nesse particular, cabem breves observações que iniciamos com a ponderação de Francesco Carnelutti de que o processo é um método para a formação ou para atuação do direito e, por isso, serve ao direito?34 Quero com isso dizer que as sentenças parciais dizem com a utilidade e a efetividade do processo. Dizem, pois, com o devido processo legal substantivo, de garantia dos direitos fundamentais do cidadão. Dizem, ademais, com a justiça célere e, por isso, efetiva.

De certa forma, é o que admite, reversamente, o texto normativo contido no art. 38, IV, da Lei de Arbitragem.35

Tanto a lei brasileira (art. 38, VI) quanto a Convenção (art. V, l, e) não questionam a validade da sentença parcial, apenas exigem seja a decisão obrigatória.

Aliás, é essa a prática arbitral, menos formalista, desapegada de conceitos rígidos e, assim, conduzida à efetiva realização da justiça, ciente de que a ciência processual existe para se alcançar a satisfação do direito material pretendido.

Tratando das sentenças arbitrais parciais, informa Irineu Strenger que “inúmeros são os caminhos, tais como as decisões interlocutórias ou decisões stricto sensu dirimindo questões que opõem as partes, deixando de lado outras que serão resolvidas ulteriormente (…). Outra vertente é a prolação de sentença parcial sobre montante que o tribunal considera indiscutivelmente devido por uma parte à outra e que deve ser pago (…)”.36

E essa visão mais efetiva da jurisdição, menos fetichista do processo que inspira, e sempre inspirou, a prática e a legislação arbitral.

Por sinal, a nova regra do art. 273, § 6°, do CPC autoriza, expressamente, a concessão de tutela antecipada “quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcelas deles, mostra-se incontroverso”.

Se é certo que ainda estamos no trato de tutela, por outro lado é clara a tendência de o próprio processo estatal, bem mais rigoroso e formalista que o processo arbitral, vir a adotar a dépeçage ou fragmentação da sentença.

Por essas resumidas razões que mantemos a afirmação inicial, obviamente na assunção de que a sentença parcial comporta os requisitos necessários que lhe dão existência e força.

b) Tratar-se de sentença final, confirmando e tendo como anexo sentença parcial anterior?

Não há modificação nas respostas acima.

6) A aprovação da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 altera, de alguma forma, as respostas às perguntas acima colocadas?

Como já demonstrado no item 3 supra, não tendo as partes optado por escolher outra lei processual, diversa daquela do local onde foi proferida a sentença, a Convenção em nada altera as respostas aqui apresentadas.

É o parecer.

Rio de Janeiro, 15 de julho de 2003.

Notas

1 Rudolf von Ihering, A Finalidade do Direito, trad. J. A. Faria Corrêa, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1919, vol I, p. 1.

2 A natureza exterior, ao ser indagada sobre a causa de seus fenômenos, aponta para trás, enquanto a vontade assesta para frente; aquela responde com quia; esta, com ut. Ihering, op. cit., p. 2.

3 Os Métodos Alternativos de Solução de Conflitos no Quadro do Movimento Universal de Acesso à Justiça, Revista Forense, vol. 326, abril/junho 1994, p.121. Nas palavras de Cappelletti, “Há, porém, outro obstáculo, a que propus chamar processual. Por “obstáculo processual” entendo o fato de que, em certas áreas ou espécies de litígios, a solução normal – o tradicional processo litigioso em juízo – pode não ser o melhor caminho para ensejar a vindicação efetiva de direitos. Aqui, a busca há de visar reais alternativas (stricto sensu)aos juízos ordinários e aos procedimentos usuais”.

4 No Brasil seríssimos esforços têm sido desenvolvidos no sentido de se modificarem as regras do direito processual civil e de introduzir novos institutos visando à agilização da prestação jurisdicional. São buscas pertinentes que visam aos maiores interesses dos jurisdicionados, mas cujo debate não pode passar ao largo do enfrentamento de décadas de descaso do Estado no suporte material e financeiro ao Poder Judiciário e do contencioso desenfreado praticado pelo próprio Estado e seus entes indiretos, cujas finalidades não raro são questionáveis.

5 Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

(…)

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano:

III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social.

6 Leis 8.987/1995, 9.472/1997, 9.478/1997, 8.666/1993, 10.303/2001.

7 O Poder Judiciário e a Arbitragem. Quatro anos da Lei 9.307/1996 (1ª Parte), Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, Ano 3, nº 9, jul.-set. 2000, p. 317.

8 Arbitrage, Córdoba, Ad Hoc, 1993, p. 80.

9 Eros Grau, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo, Malheiros Editores, 2002, p. 34.

10 À época da elaboração do anteprojeto da Lei de Arbitragem, ano de 1991, as preocupações voltavam-se marcadamente para os empecilhos legais e conceituais que dificultavam a concessão de exequatur aos laudos arbitrais estrangeiros.

11 L’arbitrato Commerciale Internazionale. Milano: Giuffrè Editore, 2000, p. 224.

12 Piero Calamandrei. Direito Processual Civil. Trad. Luiz Abezia e Sandra Barbiery, Campinas, Bookseller, 1999, p. 67 e 79.

13 Arbitragem, Jurisdição eExecução. Análise Crítica da Lei 9.307, de 23/09/1996, 2ª. edição, revista e atualizada, São Paulo, RT, 1999, p. 270.

14 A Lei de Arbitragem Comentada, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 118.

15 Clávio de Melo Valença Filho, Poder Judiciário e Sentença Arbitral – De Acordo com a Nova Jurisprudência Constitucional, Curitiba, Juruá, 2002, p. 169.

16 Comentários à Lei de Arbitragem, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 175.

17 J. C. Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol V, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 91.

18 Comentários ao Código de Processo Civil, tomo VI, Rio de Janeiro, Forense, 1975, p. 479.

19 Pontes de Miranda, op. cit., p. 97.

20 Op. cit., p. 83.

21 Temos a informação de que no caso em exame não houve o exercício pelas partes da opção aberta pela Convenção de escolha de outra lei processual distinta daquela do local da prolação da decisão arbitral.

22 International Commercial Arbitration, edited by Emmanuel Gaillard and John Savage, The Hage, Kluwer Law International, 1999, p. 978.

23 L’Arbitrato Commerciale Internazionale, Milano, Giuffrè Editore, 2000, p. 233.

24 Op. cit., p. 17.

25 Cf. notas l e 2.

26 Arbitragem Através dos Tempos. Obstáculos e Preconceitos à sua Implementação no Brasil. In A Arbitragem na Era da Globalização, coord. J. M. Rossani Garcez, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 50.

27 Pedro A. Batista Martins, Aspectos Jurídicos da Arbitragem Comerciai no Brasil, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1990, p. 86.

28 Ibidem.

29 Arbitragem no Brasil, Edição do Centro de Conciliación y Arbitraje, Montevidéu, Bolsa de Comercio, 2000, p. 119.

30 Op. cit., p. 279.

31 O Direito na Doutrina, Curitiba, Juruá, 1998, p. 301.

32 Op. cit., p. 90.

33 Cf. Eros Grau, op. cit., p. 33.

34 Instituições de Processo Civil, tradução de Witt Batista, Campinas, Servanda, 1999, p. 72.

35 Art. 38. Somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que: (…) (vi) a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, e não foi possível separar a parte excedente daquela submetida à arbitragem. (grifos nossos).

36 Arbitragem Comercial Internacional, São Paulo, LTr, 1996, p. 181

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