Considerações Doutrinária e Jurisprudencial1

Pedro A. Batista Martins

I. Cenário Histórico do Anonimato

1. É sempre interessante abordarmos o tema da palestra, no primeiro instante, com a lanterna na popa, para que possamos perceber o cenário histórico que precede a inserção, no nosso sistema jurídico, da Lei nº 6.404/76, que dispõe sobre as sociedades anônimas.

2. O momento era de todo ruim para o investimento em ações. O mercado de capitais amargava o encilhamento do início da década de 70 e o investidor encontrava-se desiludido com o retorno do capital empregado nas sociedades anônimas. O negócio não conferia segurança jurídica satisfatória dado o desequilíbrio na relação maioria-minoria.

Era preciso alterar, sobremaneira, o estado de coisas. Imperioso o mercado de capitais. Não há economia que se desenvolva e se sustente sem um mercado atuante, ágil e fortalecido.

Como dizia à época Hélio Beltrão, o Brasil precisa de mais sócios e menos credores. Recursos existiam, faltava direcioná-los, adequada e satisfatoriamente, para os canais produtivos e para os empreendimentos de médio e longo prazos. Necessário reunir o capital de risco em um sistema de alocação confiável, com estrutura jurídica clara e bem definida.

Contudo, o revigoramento do mercado de capitais passava, e sempre passa, pelo fortalecimento das sociedades anônimas. Não há mercado de risco que se desenvolva sem um modelo societário confortável e atraente para o investidor. Com vistas, acima de tudo, a uma equilibrada relação controlador-minoritário.

3. A dinâmica do risco trespassa as sociedades anônimas, instrumentos que são do desenvolvimento de uma nação. As companhias foram criadas pelo comerciante e aprimoradas pelo jurista (v.g. limitação de responsabilidade) para atuarem, justamente, como instrumento jurídico de atração da riqueza popular.

Daí a importância, à época, de se aprimorar as regras e institutos atinentes às sociedades de capital, como meio de se revitalizar o mercado de risco. Mercado este que, dada sua finalidade empresarial e concentração de recursos populares, é alvo de políticas de estado.

Para tanto, era indispensável revisitar e reformular as regras do anonimato em vigor desde 1940.

Indispensável, antes de tudo, proteger o investidor minoritário, tão maltratado na relação societária, a ponto de ser identificado pelos “proprietários” das empresas como tolo e arrogante, pois não só entregavam suas poupanças aos “proprietários” como, ainda, pretendiam deles haver dividendos.

4. A relação maioria-minoria era a principal questão a ser enfrentada pelo novo modelo societário. A pedra de toque do novo diploma do anonimato a ser trabalhada. Sem a melhoria das regras protetivas da minoria as empresas tenderiam a viver o dilema da estatização ou da desnacionalização.

Sem capital as sociedades buscavam empréstimos para viabilizar os projetos e empreendimentos. Com o custo financeiro, se descapitalizavam. Em dívida, acabavam os controladores por alienar suas ações ao investidor estrangeiro.

Do mesmo modo, ausente a mobilização da poupança popular, restava ao Estado intervir na atividade econômica de modo a viabilizar os grandes empreendimentos.

Não havia outro caminho. A revitalização do mercado de capitais, abalado pelo crack da Bolsa, passava pela atualização das normas do anonimato e da tutela dos direitos dos minoritários, sem se descuidar, contudo, de assegurar o direito dos majoritários.2

E tal propósito foi levado a efeito pelo legislador com a promulgação da Lei nº 6404/76. Esse diploma buscou, em essência, melhorar a posição dos minoritários, conferindo, ou aprimorando, dentre outros, os direitos essenciais, a possibilidade de recesso e de eleição de administrador e conselheiro fiscal, renda mínima através de dividendo obrigatório, maior transparência das demonstrações financeiras e informações de interesse; notadamente, no que toca ao tema desta palestra, institucionalizou a figura jurídica do acionista controlador, impondo-lhe deveres e responsabilidades, reprimindo, ainda, o exercício abusivo do poder de controle.

II. Controle e Caracterização

1. Até a edição da Lei nº 6.404, em 1976, a figura do controle era, naturalmente, identificada no momento das deliberações assembleares. Era nas reuniões de acionistas que a maioria tomava corpo e se apresentava como titular do direito de voto. Era nessas reuniões que a maioria se cristalizava para os fins jurídicos.

Após as assembléias essa universalidade de fato se desagregava, recaindo nos administradores o poder máximo de gerir a empresa.

Estes, os administradores, em tese não se subordinavam a um controle legalmente reconhecido, pois somente identificável nas reuniões assembleares. Identificação essa que dependia da formação do agregado de acionistas que, com seus votos convergentes e predominantes, constituíam e, assim, davam visibilidade, à maioria.

Era, essencialmente, uma universalidade de fato, condicionada que estava sua identificação à prova do exercício convergente do direito de voto.

Contudo, se tal era verdade, e ainda é, o fato é que o poder de controle não se restringia ao exercício do voto nas assembléias. Sua extensão e alcance iam além, e muito além, dos momentos assembleares; e, mais, poderia ser usado tanto em prol da empresa, impulsionando-a ao atingimento de seu fim, quanto em proveito pessoal dos controladores.

O controle era, e é, expresso e implícito, pois exerce-se por meio do voto ou, ainda, por via de decisões executivas de seus administradores. Estes, não raro, confundem-se com o próprio controlador.

Por seu turno, ao minoritário, praticamente, só é dado o poder de fiscalizar o curso social, seja nas assembléias ordinárias, seja na indicação de membro do Conselho Fiscal ou na análise dos livros sociais (i.e. exibição de livros). E tal poder, convenhamos, é limitado, pois, nestes dois últimos casos, é necessário agregar-se percentual mínimo para legitimar seu exercício.

Daí a importância de se personificar a figura do controlador de modo a definir-lhe os deveres e as obrigações, sem descuidar de seus naturais e imperiosos direitos.

Foi o que fez a Lei nº 6404/76, em seus artigos 116 e 243, § 2º, verbis:

Art. 116 – Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

Parágrafo único – O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”

Art. 243 – O relatório anual da administração deve relacionar os investimentos da companhia em sociedades coligadas e controladas e mencionar as modificações ocorridas durante o exercício.

§ 1º – …

§ 2º – Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.

§ 3º – …”

Controle é, pois, o poder que detém, e exerce o acionista, de dirigir as atividades da sociedade e orientar o funcionamento dos órgãos sociais.3

Numa visão holística, segundo Bulhões Pedreira, “poder significa a capacidade de um agente intencionalmente fazer algo ou produzir um resultado”.4

2. Para a caracterização do controle não basta ao acionista o mero exercício do direito de voto. É preciso que o exercício seja permanente. O exercício meramente eventual, por uma dada universalidade de fato, não identifica os acionistas como controladores, para os fins e efeitos da lei do anonimato.

O acionista, ou o grupo de acionistas, somente será considerado controlador se demonstrado que seu voto consubstancia a maioria absoluta dos votos dos acionistas presentes nas três últimas assembléias gerais. 5

3. Identificada a pessoa do controlador, ato contínuo e no mesmo dispositivo legal, o legislador enquadrou a esfera de atuação jurídica em que o exercício desse poder é legítimo e eficaz.

A licitude no seu exercício conforma-se com duas finalidades, a saber: realizar o objeto social da companhia e fazê-la cumprir sua função social. 6

4. E o que vem a ser o dever do acionista controlador de usar o poder com o fim de fazer a companhia cumprir sua função social? Conceito vago, amplo e indeterminado, passível de interpretações ambíguas que o jurista, a prática e o juiz ainda o mantém distante, em latente estado de observação.

Será um dever positivo do acionista controlador? Para Comparato7, o único alcance desse dispositivo é o de impôr certas restrições no exercício do poder de controle. Assim como ocorre com o fluido conceito constitucional da função social da propriedade, também em sede societária essa acepção finalística continua inaplicada.

Mesmo porque, no entendimento de Comparato, seria difícil impôr ao empresário um dever altruísta quando a própria lei determina o fim capitalista da sociedade (seja qual for o objeto) e veda o administrador a prática de atos de liberalidade. Enfim, a própria jurisprudência demonstra que a ineficiência gerencial pode determinar a liquidação da companhia, por falta do atingimento de seu fim lucrativo.

Então, até que ponto deve, ou pode, o administrador ou o controlador sacrificar o lucro em prol da função social, ciente de que o lucro é dever positivo primário, ao lado da realização do objeto social da companhia.

Nem tanto, nem tampouco. Parece que o ditame da função social deve informar as decisões societárias. Permeia o campo da responsabilidade frente ao empregado, a comunidade, o meio ambiente e outras mais.

Coaduna-se com a nova geração do direito que atende aos princípios da solidariedade. Falamos das melhorias nas condições de trabalho, na oportunidade para deficientes e nos programas de assistência médico-hospitalar.

Os projetos de patrocínio cultural e artístico atendem, também, ao cumprimento da função social.

Não se trata, ao que parece, de um dever positivo, mas de uma (in)consciente assunção de responsabilidades que o empresário assume frente a inatividade do estado.

Com o tempo, há de se criar a conscientização do empresário, não como um substituto do estado, com deveres sociais positivos, e, sim, como um respeitado colaborador e parceiro, face às conhecidas deficiências estatais e a importante função que a companhia exerce na economia mundial.

Está aí, a comprovar, o balanço social que os empresários orgulhosos fazem questão de exibir. É esse um símbolo da qualidade empresarial. É fruto da aplicação do princípio da função social da empresa.

5. O domínio societário da maioria é marcante. Antes, é princípio universal que determina a existência da companhia. Daí ser o equilíbrio maioria-minoria a onda propulsora dos movimentos legislativos em sede societária.

No Brasil, como visto anteriormente, a proteção do acionista minoritário é a espinha dorsal da Lei nº 6.404/76.

A par da personificação do acionista controlador, outros instrumentos legais e estatutários foram incorporados à lei como contraponto ao poder majoritário.

Temos, nesse rol, o quorum mínimo de deliberação (art. 129), a unanimidade de votos para aprovação da transformação da companhia (art. 221), o voto para órgãos da administração, por classes de preferenciais (art. 18) e de ordinárias (nas companhias fechadas – art. 16, II), veto por classe de preferencialistas (art. 18, § único), voto múltiplo para eleição de conselheiro fiscal (art. 141) e veto do minoritário via acordo de acionistas (art. 118).

6. No que toca a aquisição do controle societário pode esta ser originária ou derivada.

É originária quando surge por ato de vontade do adquirente ou, espontaneamente, por fatos circunstanciais e alheios.

Resulta de ato de vontade quando a aquisição das ações, como singularidade, acaba por compor um agregado acionário no ativo da pessoa, inexistente, até então, no patrimônio de outro acionista.

É também resultante de ato de vontade, e tem caráter originário, a formação de bloco de controle por força de constituição de sociedade holding, de acordo de acionista, de oferta pública para aquisição de controle e subscrição de aumento de capital.

Opera espontânea e originariamente no patrimônio da pessoa pelo resgate ou reembolso de ações, pela companhia, ou pela morte do controlador e consequente diluição entre herdeiros das ações componentes do bloco de controle.

Será derivada a aquisição quando resultar da cessão do conjunto das ações que formam a maioria. Ao contrário da aquisição originária, a derivada pressupõe a existência prévia do bloco de ações de controle na titularidade de pessoa ou grupo de pessoas.

Pode resultar da estipulação de usufruto, transferindo ao usufrutuário o uso e gozo e, assim, o direito de voto.

7. Por falar em transferência de controle, é importante salientar que a alienação por acionista que detém 50% das ações para seu sócio detentor dos outros 50% da sociedade não configura alienação de controle. Mesmo se unidos por acordo de acionistas.

Nesse caso, a mera co-gestão da empresa por intermédio de acordo de acionista não confere aos sócios, isoladamente, o poder de controle.

Ao contrário, o acordo de acionista instrumentaliza, apenas, o exercício do poder, mas não o poder em si que, no caso, não é detido isoladamente por nenhum dos dois acionistas.

A alienação dos 50% para o único acionista resultará em aquisição originária do controle, visto não existir no ativo de nenhum dos acionistas bloco de ações que cristalize a maioria.

Essa transferência não se caracteriza, dessa forma, como uma alienação de controle para os efeitos legais, pois o bloco, apesar de expressivo, não forma, per se, a maioria votante que somente será atingida quando agregado ao bloco de ações do adquirente.

Em suma, via acordo de acionistas, os únicos sócios, em conjunto, formavam a maioria do capital votante. Isoladamente, contudo, não detinham o controle social; e, já que não detinham, não podiam alienar.

Nas palavras de Comparato:

Nas hipóteses em que o controle é conjunto … não se entende que há alienação quando um desses titulares do poder de comando aliena as suas ações ao outro ou aos outros. O que há, então, é a consolidação ou reforço do controle na pessoa do adquirente das ações.

Quando, pois, a lei acionária regula a alienação do controle ela está supondo que o alienante já possuia esse bem em seu patrimônio: que já dispunha, isoladamente, do poder “para dirigir as atividades …”8

8. Matéria extremamente controvertida na doutrina é a atinente a função do veto como mecanismo indireto de controle societário.

Para alguns, o direito de veto é faculdade que leva o seu titular, ou pode levar, ao exercício de um poder (às avessas) de controle.

Em outras palavras, dependendo da natureza e alcance das hipóteses em que a concordância do minoritário seja condição de validade da deliberação societária, pode o direito de veto assumir uma proporção que assegure ao minoritário o controle sobre as atividades da companhia.

Lamy9 e outros discordam ao acentuarem que mero mecanismo impeditivo da existência de quorum ou de direito de voto em separado (art. 16, IV, Lei das S.A.) não confere, por definição, poder de dominação da empresa, mas, apenas, o de obstar certas deliberações.

Contudo, não foi o que decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais; na Apelação Cível nº 000.199.781-6/00 em conexão com o Agravo de Instrumento nº 164.822/9-00 – Comarca de Belo Horizonte:

Administrativo. Ações de Sociedade de Economia Mista – Alienação – Nulidade de Acordo de Acionistas. O acordo celebrado entre as partes, em violação à Lei Estadual nº 11.069/95 e à Constituição do Estado de Minas Gerais deve ser anulado por configurar perda do controle acionário.

(Ap. Cível nº 000.199.781-6/00 em conexão com Agravo de Instrumento nº 164.822/9-00; Apelante: Southern Electric Brasil Participações Ltda.; Apelado: Estado de Minas Gerais; Relator: Des. Garcia Leão; Julgamento em 7.8.2001; publicação em 7.9.2001)”

O Conselho de Administração é formado de 11 (onze) membros titulares, dos quais 6 (seis) são indicados pelo Estado, 4 (quatro) pela Southern Eletric e 1 (um) pelos demais acionistas minoritários, sendo que o voto qualificados é de 8 (oito) o que demonstra, no fundo, o VETO pelos acionistas minoritários, em evidente quebra do controle acionário do Estado, ou melhor, da sua PREPONDERÂNCIA. Tal coisa acontecerá mesmo na hipótese prevista na cláusula 4.2.4, em que o Estado ficará com o direito de indicar mais um conselheiro, na hipótese de os acionistas minoritários não exercerem o seu direito. Jamais o Estado alcançaria o “quorum” qualificado.

E o que dizer da cláusula que, tratando da composição e do funcionamento dos órgãos de administração da CEMIG, instituiu quorum qualificado e, conseqüentemente, sujeito as decisões do Estado ao veto dos acionistas minoritários, para deliberações que versarem sobre assuntos relativos a peculiaridades da gestão empresarial (distribuição de lucros, financiamentos, dissolução ordinária, fusão, incorporação ou cisão total da sociedade, cláusula 40), como se esta já não fosse mais uma atribuição inerente ao status de acionista controlador?!

O que se depreende dessas estipulações é que delas se valeram os signatários do malsinado acordo de acionistas para burlar a proibição constitucional da venda, sem autorização legal, de ações que assegurem ao Estado, como titular da propriedade da maioria do capital social da CEMIG, o efetivo controle que assumiu, nessa qualidade, sob a égide do interesse público subjacente à própria constituição da empresa”. (Agravo)

9. Tema interessante e que, por certo, será ainda objeto de análise pelo Poder Judiciário diz respeito ao chamado controle externo da companhia, não enfrentado pela nossa lei do anonimato.

O legislador desconsiderou a chamada “influência” externa, visto que a questão extrapola os estritos limites jurídicos atinentes à sociedade e ao controlador, e não é exercido, ao menos diretamente, através do direito de voto.

Dessa forma, nossa lei restringiu-se a fixar ditames legais ao que se costuma denominar de controle interno.

A influência externa, ou controle externo, é exercida sobre a sociedade com base nos termos e condições estabelecidos nos contratos que a companhia firma com terceiros. Daí alguns juristas preferirem utilizar a expressão influência e não poder.

Essa influência advém, basicamente, do endividamento da sociedade e, consequentemente, das obrigações de fazer e não fazer acordadas com os credores, limitadoras da liberdade empresarial, notadamente no que toca a alienação de bens, a distribuição de lucros e ao limite de endividamento, dentre outros.

A mesma influência jurídica se põe no momento em que as deliberações sociais passam a ser tomadas à vista do que dispõem as obrigações assumidas com terceiros pela companhia.

A deliberação aprovada sem observância das covenants contratuais (obrigações de fazer e não fazer) levará a companhia ao inadimplemento contratual, sujeitando-a aos seus consectários. Por outro lado, as covenants podem ser tão rígidas e exageradas ao ponto de violar direitos dos acionistas ou de colocar em risco as atividades sociais.

Enquanto as leis alemã e norte-americana estabelecem responsabilidade por perdas e danos aos controladores externos por uso abusivo de prerrogativas em prejuízo da companhia ou dos acionistas, no Brasil o suporte legal deverá ser buscado nos preceitos do direito das obrigações, visto não existir nada específico na lei do anonimato.

Para Carlos Celso Orcesi da Cost10, “ Controle interno (natureza associativa) redunda no exercício de uma soberania enquanto o controle externo (natureza contratual) outorga ao credor o exercício de um poder naturalmente contratual ou, às vezes, legal de constrição, o que implica tão-somente na possibilidade de responsabilização do controlador externo, por danos causados à sociedade em geral, quando e se houver agido além do seus limites contratuais.”

10. Para Bulhões Pedreira11 são as seguintes as diferenças entre poder de controle interno e o externo:

Controle Interno Controle Externo
(1) Funda-se no exercício dos direitos de participação (1) Resulta de direitos de crédito contra a Cia. acionista
(2) Capacidade de dirigir toda a atividade (2) Limitada a alguns negócios ou aspectos da Cia. e da sua atividade
(3) Peculiar às Cias. e qualquer pessoa jurídica ou natural que exerça a função empresarial (3) Pode ocorrer com outros tipos associativos onde a vontade social é definida por maioria de voto

Guilherme Döring Cunha Pereira12 caracteriza o controle externo mediante as seguintes hipóteses de ocorrência:

1. que a influência seja de ordem econômica;

2. que se estenda a toda atividade desenvolvida pela empresa controlada;3. que se trata de um estado de subordinação permanente ou, pelo menos, duradouro; e

4. que haja impossibilidade para a controlada subtrair-se da influência, sem séria ameaça de sofrer grave prejuízo econômico.

Para esse autor, o controle externo não se configura, juridicamente, se não for suficientemente amplo, tanto material quanto temporal, de modo a sujeitar longamente toda a atividade social. Para ele,13Se essa influência externa não chega a ser dominante, no sentido de se estender a toda a atividade empresarial da subordinada e de ter permanência ou certa duração, não há como falar em controle”. Como afirma Pastéris, ‘obviamente, é de excluir-se uma forma parcial de controle, limitada a uma só das várias atividades do sujeito; ou se está sob controle ou não”.

11. Outra forma de controle é aquele exercido pelos administradores da companhia, mediante o uso de procuração obtida junto aos acionistas. Trata-se do controle gerencial, visto nas empresas com alto grau de diluição acionária.

O pedido de procuração consta estruturado no art. 126 da Lei das S.A., cabendo à Comissão de Valores Mobiliários regulamentar a matéria.

O voto é exercido pelo acionista, na pessoa do outorgado (i.e. administrador), por força da instrumentalização da procuração.

É vedado ao administrador, no entanto, se utilizar da procuração para votar a aprovação das demonstrações financeiras, do relatório da administração e demais documentos que lhes são conexos, por força do art. 134, § 1º, da Lei nº 6404/76.

III. Responsabilidade do Controlador

1. Em linha com as metas de revitalização do mercado de capitais, o legislador lançou no art. 117 da Lei das S.A. as modalidades de atos definidores da conduta abusiva por parte do controlador. São modalidades exemplificativas.

i. “Art. 117 – O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.

§ 1º – São modalidades de exercício abusivo de poder:

1. orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;”

Trata-se de dispositivo genérico capaz de abraçar vasta gama de condutas ilícitas. A doutrina e a jurisprudência têm papel relevante na identificação da amplitude da esfera jurídica que abraçará o ilícito.

Já foi dito, e concordamos, que a hipótese de ato lesivo ao interesse ou a economia nacional excede os conceitos de contrariedade às leis, aos bons costumes e à ordem pública que norteiam a execução do objeto social, ex vi art. 2º da Lei das S.A.

A prova de que o administrador praticou o ato por orientação do controlador terá de ser devidamente produzida. A comprovação neste caso é mais penosa para o credor. E é o que ocorrerá se a orientação abusiva se operar indireta ou transversamente.

A orientação direta resulta expressa, normalmente, em uma deliberação assemblear ou pode resultar de ato praticado pelo administrador-controlador da sociedade ou sob sua influência. Daí ser mais fácil de identificar e se comprovar.

ii. “Art. 117 – …

§ 1º – …

b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;”

A prática desses atos há de ser intencional. Exige-se para sua configuração o dolo específico. A reparação das perdas e danos depende da prova que ateste a obtenção de vantagem indevida.

A hipótese constante desse item demonstra que o interesse social é mais abrangente que o simples interesse do acionista. O interesse é o da própria companhia e daqueles que lhe dão “vida”. São eles os que trabalham na empresa, os investidores, os fornecedores e os clientes.

Trata-se de um interesse democrático, cujo fim é a manutenção das relações jurídicas e sociais da companhia.

Com a histórica decisão “Fruehauf14 a jurisprudência pôs por terra o pragmatismo autocrático da supremacia dos interesses dos acionistas.

Daí consubstanciar ato abusivo a liquidação de companhia próspera e a transformação, incorporação, fusão ou cisão com fins impróprios ao interesse social.

iii. “Art. 117 – …

§ 1º – …

c)promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia; ”

Nesse caso, também é necessário apontar e comprovar o ilícito societário. Entretanto, restará menos complexa a prova dado que o ato ilegal restará expresso em alguma espécie de documento.

Aqui, também, o legislador confirma o amplo alcance do interesse social. Extrapola ele os limites internos da companhia.

iv. “Art. 171 – …

§ 1º- …

d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;”

Pelo texto da lei, a rigor, a simples nomeação de administrador ou fiscal inapto geraria, per se, a responsabilidade do controlador. Mesmo inexistindo dano à companhia, a violação do dever de diligência seria fato capaz de responsabilizar o controlador.

Entretanto, não parece que a doutrina caminha nessa linha extravagante.

De acordo com a tradição de nosso sistema positivo, somente com a efetiva comprovação do dano é que o controlador poderá se responsabilizar pelo ato culposo de administrador ou fiscal. Ademais, depende de prova a inaptidão moral ou técnica do indivíduo.

Sem a existência de dano, parece difícil a imputação do dever de reparar.

Para aqueles que entendem diversamente, talvez o máximo que se pudesse atingir fosse a responsabilização do controlador em sede administrativa, notadamente em processo aberto na Comissão de Valores Mobiliários, condicionada à prova do prévio conhecimento, pelo controlador, da ausência de qualidades morais ou técnicas do administrador ou do fiscal nomeado.

v. “Art. 117 – …

§ 1º- …

e)induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembléia geral;”

Esse dispositivo complementa e ratifica as regras de conduta dos administradores.

O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e o interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

Cabe, pois, ao administrador, agrade ou não aqueles que o elegeram, agir em proveito dos fins sociais.

O administrador deve atingir as finalidades exigidas pelas suas atribuições, fiel a seus deveres e responsabilidades.

A nomeação não autoriza desvios na função para atender os interesses daqueles que o elegeram. Não autoriza o conluio ou a prevaricação.

A prática de atos ilegais, novamente, depende de prova e, ao que parece, da comprovação dos danos efetivos.

A tentativa de induzir a atos ilegais deverá ensejar apuração pela Comissão de Valores Mobiliários ou, em caso extremo, poderá sujeitar o infrator a processo criminal.

vi. “Art. 117 – …

§ 1º – …

f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não eqüitativas;”

Trata-se de situação em que o controlador age em conflito de interesses.

O controlador é figura distinta da companhia devendo agir e exercer seu voto com o fim de atender aos exclusivos interesses da sociedade. O interesse passível de conflito pode ser direto ou indireto, seja o acordo firmado pelo próprio controlador ou por interposta pessoa.

Note que os contratos aperfeiçoados em conflito de interesse também são proibidos em sede tributária, dada a presunção de distribuição disfarçada de lucro às transações não eqüitativas.

vii. “Art. 171 – …

§ 1º …

g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.

Os administradores estão proibidos de aprovar suas próprias contas, por força do art. 134, §1º, Lei das S.A..

Mas são eles que deliberam, internamente, sobre tais contas e a submetem à aprovação assemblear.

Se a irregularidade aprovada em assembleia com o voto do controlador tiver por fim favorecê-lo, configurado está o abuso no exercício do voto e sua consequente responsabilização.

Entretanto, se não se comprovar o favorecimento, não há que se falar em ato abusivo do controlador. Não há responsabilização sem o vínculo causa-efeito.

Contudo, provando-se o nexo, caberá, sim, ação de anulação da deliberação, por vício do documento que lhe é subjacente, nos termos do art. 286, lei das S.A.

O segundo comando da alínea “g” em questão determina ser dever do controlador apurar toda denúncia que justifique fundada suspeita de irregularidade ou que saiba ou devesse saber procedente.

A regra é amplíssima e de caráter subjetivo a ponto de somente à luz dos fatos e circunstâncias do caso concreto autorizar o intérprete sua aplicação.

A apuração de denúncia referida na lei é de caráter genérico, podendo ser feita interna ou extra corporis.

O controlador sabe procedente a denúncia quando esta, pelas suas características, reflexos e repercussões, sai do campo de meras especulações e entra na esfera da presunção.

Devia o controlador saber procedente a denúncia, pressupõe que a posição especial ocupada pelo controlador, aliada aos fatos e ao contexto em que se perpetrou o ilícito, por si só, assegura prevalência na obtenção de informações.

2. Ainda neste capítulo, resta-nos ressaltar que a adequada responsabilização do acionista controlador está condicionada a efetiva produção da prova caracterizadora do controle. Seja o controle direto ou indireto imprescindível a plena demonstração da existência do controle.

Vejamos a jurisprudência:

Não comprovando o autor ser qualquer dos réus acionista controlador do Banco Boavista S.A. ou existir acordo de acionista que lhe desse esse controle, não tem ele, autor, a ação prevista no art. 246 da Lei nº 6404/76, razão pela qual dou como carecedor da ação. Julgo extinto o processo, na forma do art. 267, VI, C.P.C.”15

Tratando-se de ação de reparação de danos fundada no art. 246 da Lei das S.A., são partes legítimas para responder aos seus termos os acionistas e sociedades ditos controladores, assim definidos no art. 116 da Lei das S.A., havendo, no caso dos autos, elementos probatórios que identificam como tais as pessoas e entidades face as quais foi intentado a presente ação.”16

Ainda, no mesmo sentido, decisão do Superior Tribunal de Justiça sustentada no entendimento de Fran Martins:

Saber se há grupo de pessoas vinculadas sob controle, com o objetivo de dirigir as atividades sociais, constitui em verdade questão de fato.

[o] grupo de pessoas sob controle comum é mais difícil de ser identificado, pois a lei não possui nenhum dispositivo a respeito de reconhecimento desse grupo, a não ser em caso de ações em condomínio (art. 27, § único) ou quando se tratar de grupos de sociedade (art. 265). Será, então, uma questão de fato, devendo o controle ser demonstrado mediante provas …”17

3. Quanto à identificação do controle para fins de imputação de responsabilidade, o Judiciário não tem se furtado a enfrentá-la nas situações fáticas em que se apresentam no dia-a-dia societário.

Novamente escudado em Fran Martins, o STJ definiu controle direto, como aquele “em que a própria sociedade é detentora dos direitos de voto capazes de assegurar a preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores” e, indireto, “quando esses direitos pertencem à controladora através de outras controladas”.18

Quanto ao controle aperfeiçoado por grupo de pessoas, assim se expressou o STJ:

Tratando-se de grupos de pessoas ligadas sob controle comum, não é de rigor que todos os seus integrantes sejam titulares de direitos de sócio da sociedade controlada. O direito de sócio exercido de tal ordem que garanta ao grupo a supremacia nas deliberações das Assembléias Gerais e o poder de eleger a maioria dos administradores da Cia. pode ser pertencente a um ou alguns componentes apenas do grupo.”19

IV. Abuso de Direito

1. A doutrina não é uníssona quando chamada a conceituar o abuso de direito.

Para alguns, o abuso caracteriza-se pelo exercício de um direito com o fim de prejudicar alguém. Para outros, pelo exercício de um direito ausente de motivos legítimos.

Outros tantos associam o abuso de direito a negligência ou a imprudência.

Parte da doutrina entende ser abusivo o exercício anormal ou irregular de um direito.

Outra parcela sintetiza o abuso de direito na prática de um ato inútil para o autor, aliado a um resultado nocivo para outrem ou quando o titular procede como um egoísta, sem atenção ao fim da lei, aos bons costumes e à solidariedade, independentemente do elemento intencional.

Durante a vigência do Código Civil de 1916, o abuso de direito fundamentava-se no art. 159 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”) e no art. 160 (“Não constituem atos ilícitos, os praticados no exercício regular de um direito”).

Hoje, o art. 187 do Código Civil de 2002 define o ato nos seguintes termos: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

2. No que tange às sociedades anônimas, o legislador conceituou o abuso do direito de voto no art. 115 da Lei nº 6404/76 e o vinculou a uma finalidade.

Segundo o referido artigo, o acionista deve exercer o direito no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.

Na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal, por voto do Min. Moreira Alves, adotou o conceito tradicional de Champaud, para definir o abuso do poder de controle, verbis:

O abuso de poder de controle resulta da causa ilegítima de decisões tomadas com a única finalidade de prejudicar uma categoria de acionistas ou para satisfazer os interesses exclusivamente pessoais de alguns deles. Nessa hipótese o controle é desviado de suas finalidades legítimas que são de assegurar a acumulação do patrimônio social e a prosperidade da empresa.

Adotando-se esta posição, bastante razoável, o abuso de poder se traduziria em uma causa ilegítima dos atos praticados, com alguma dessas finalidades: a) prejudicar uma categoria de acionistas; b) satisfazer exclusivamente interesses pessoais de alguns deles.”20

Extrai-se dessa definição um misto dos conceitos adotados pela doutrina (cf. 4.1. acima).

3. Também no caso de abuso de poder societário é imprescindível a prova do prejuízo.

Para a caracterização do abuso de poder de que tratam os arts. 115 e 117 da Lei das S.A., é indispensável a prova do dano.21

Nessa modalidade de responsabilidade exige-se a prova do abuso e da ocorrência do dano efetivo, concreto e atual, patrimonialmente ressarcível. O princípio essencial da responsabilidade civil, por sinal, funda-se na existência de prejuízo, que constitui o pressuposto indefectível da ação de indenização.22

4. Mas não é só ao controlador que se dirige o comando punitivo do abuso no direito de voto. O minoritário, também, é alvo dos efeitos da norma restritiva e responde pelos danos que causar à companhia e a terceiros pela exacerbação, inconseqüente, no exercício do voto; mesmo que tal não prevaleça ou não determine a aprovação da deliberação.

Fator determinante na efetivação do dano é a publicidade que se confere ao conteúdo do voto minoritário.

Questionamentos quanto ao desempenho da administração, a desaprovação das demonstrações financeiras e medidas judiciais adotadas contra a companhia, sócios e administradores, podem pôr em risco o bom funcionamento da empresa e abalar seu nome e crédito junto a fornecedores e instituições financeiras.

Daí a preocupação do legislador em abranger, também, o minoritário no rol dos acionistas passíveis de sanção por exercício abusivo no direito de voto. 23

5. Outra modalidade de abuso tem sido praticada por minoritários que, por falhas de estratégia ou fatores circunstanciais, não alcançam os objetivos pretendidos na sociedade.

Normalmente são juridicamente sofisticados e detém percentual relevante, apesar de não serem titular da maioria do capital votante. E, por isso mesmo, cientes de que não obterão o controle, desenvolvem uma série de ações táticas, amparadas em pseudo legalidade, com o escamoteado intuito de valorizar sua participação acionária para, ao final, por força de pressão junto à sociedade e seus administradores, alienar suas ações ao outro acionista por preço superior ao que obteria em condições normais de temperatura e pressão.

Esses abusos societários, cada vez mais freqüentes, não são necessariamente concretizados através do exercício de voto, mas consubstanciam em práticas ilícitas condenadas pelo direito.

V. Conflito de Interesses

1. Ao interpretarmos o contido no § 1º do art. 115 da Lei das S.A., não há que se pensar em taxatividade da lista de hipóteses de conflitos.

O legislador brasileiro tratou de modo exemplificativo os casos passíveis de conflito de interesses. E, não poderia ser diferente dada as múltiplas faces, a extensão, o alcance e as intrincadas nuances das modernas relações negociais. Nem sempre aperfeiçoadas diretamente, nem sempre linearmente indiretas.

A tipicidade cerrada há muito se demonstrou inadequada à realidade das relações jurídicas. Seja pela inflexibilidade da regra, impondo-se com rigor em casos concretos não questionáveis, seja pela sua inaplicabilidade em hipóteses ruidosas, por ausência de tipificação legal.

Em suma, o cotidiano societário demonstrou que a taxatividade era, no mais das vezes, injusta ou inoperante. Ora, o suporte legal era por demais exigente à vista do caso concreto, ora o oposto, inexistia hipótese a oprimir o ato ilícito.

Andou bem o legislador societário ao fixar regras abertas sancionadoras do conflito de interesses.

5.2. Na verdade, as duas primeiras hipóteses constantes do § 1º, art. 115, são bem diretas e objetivas ao reverso das duas últimas, abstratas e subjetivas.

Nas duas primeiras hipóteses a lei proíbe o acionista de votar nas deliberações relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorreu para a formação do capital social e naquelas que visem à aprovação de suas contas como administrador.

Não resta dúvida, nessas hipóteses, quanto à objetividade do comando legal. Aqui o legislador foi expresso e direto.

Afinal, no que toca a aprovação do laudo de avaliação, a lei societária confere um estridente contorno jurídico protetivo do capital social.

Por outro lado, é no momento da deliberação das contas dos administradores que o minoritário exerce, ao menos em tese, o controle dos atos internos da companhia.

5.3. O capital social, sob a ótica estritamente jurídica, opera função relevante nas sociedades de responsabilidade limitada.

Foi o desenvolvimento da teoria do capital social que permitiu a introdução da responsabilidade limitada e, assim, o florescimento das sociedades por quotas e anônimas.

O instituto do capital social permite assegurar, na sociedade, um mínimo de recurso que os sócios aportam, de modo a viabilizar o crédito. O montante capitalizado não retorna, a rigor, ao patrimônio pessoal dos sócios.

Vital instrumento jurídico, pois funciona, o capital social, como obstáculo contábil de retenção no patrimônio da empresa das quantias aportadas a título de integralização, de modo a permanecer, indefinidamente, na sociedade.

Somente a parcela de lucros que supera a cifra do capital social pode ser, validamente, distribuída aos sócios.

Compõem o instituto do capital social os elementos da realidade, unicidade e intangibilidade. Esses elementos permeiam vários dispositivos da lei societária que os tratam com intenso rigor.

Por ser o mecanismo jurídico viabilizador da limitação da responsabilidade dos sócios, o sistema legal do capital social funciona sob controle e transparência.

Daí a exceção ao direito de voto do acionista, quando se tratar de deliberação voltada à aprovação de laudo de avaliação de bens com que concorreu para a formação do capital social.

É vedação de caráter formal, e não substancial. Quer dizer que o acionista, de antemão, está proibido de proferir voto no que toca a essa ordem do dia.

Dado o rigor do elemento da realidade do capital social, o legislador presumiu a existência de conflito de interesses na votação das matérias da espécie. Presunção jure et jure.

5.4. Presume-se, também, a existência de conflito de interesses na deliberação sobre as contas da administração social.

Nessa matéria, é vedado ao acionista votar as contas enquanto administrador da companhia. Não pode ele aprovar suas próprias contas.

O conflito, novamente, é de caráter formal, o que afasta, antecipadamente, o exercício do direito de voto pelo acionista-administrador. A falta de independência afeta sua imparcialidade. Trata-se de questão ética.

Entendo que esse mandamento legal impõe-se, inclusive, na hipótese em que o voto é proferido pelo acionista-administrador, indiretamente, por via de interposta pessoa.

A jurisprudência não é harmônica nesse particular.

Decisão majoritária da Décima Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo24, afastou a incidência de conflito de interesse na aprovação das contas da administração, por voto proferido por sociedade detida pelos acionistas-administradores, pelos resumidos fundamentos a seguir transcritos, suportados em parecer elaborado por Rubens Requião:

1. a lei não estende o impedimento à hipótese de aprovação de contas de diretor proprietário ou controlador da empresa votante;

2. o art. 115, §1º é regra restritiva, não podendo ser objeto de interpretação ampliativa;

3. a lei não ignora a hipótese de uma sociedade controlada por outra, tanto que o art. 246 fixa obrigação de reparar danos causados; fosse a intenção de proibir voto dessa espécie, a vedação seria expressamente indicada;

4. tal orientação não torna inútil o intuito legal de se evitar o conflito de interesses. A preocupação da lei é mais formal do que material: não tira o controle da maioria e não desconhece que diretores são por ela eleitos;

5. fosse desejo extinguir o conflito real de interesses, teria a lei vedado que a maioria julgasse as contas da administração. Neste caso, a maioria estaria sujeita aos caprichos dos minoritários.

O voto vencido, no meu entender, mais consistente e consentâneo com o sistema legal, expôs os seguintes fundamentos de direito:

1. nos termos do art. 134, §1º, os administradores não podem votar como acionistas ou procuradores, as demonstrações financeiras;

2. o voto via sociedade burla desiderato da lei;

3. trata-se de vício formal: as pessoas naturais não podem votar per se ou agrupadas sob manto de pessoa jurídica;

4. situa-se a questão em infringência a mandamento ético e legal;

5. afina-se com a mens legis de proibir votação em causa própria.

Posteriormente, a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu decisão anulando ou declarando nulo o voto proferido por acionista–administrador, via interposta pessoa.25

5. Registre-se que os tribunais têm validado o voto proferido por acionista-administrador, em situações extraordinárias, em que a quase totalidade ou os 100% do capital votante formem o patrimônio dos impedidos.26

Nessas circunstâncias, o trato inflexível da lei poderia gerar impasses na aprovação de matérias necessárias ao curso normal da sociedade e submeter a maioria esmagadora a uma ditadura kafkiana da minoria microscópica.

6. Registre-se, por fim, que a ausência de objeção, no momento da deliberação assemblear, não preclui o direito do interessado em buscar a tutela judicial visando à anulação do voto.

Nos termos da decisão da 10ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, “a alegação de preclusão consumativa não tem amparo legal, porque não há norma que faça com que o silêncio momentâneo do acionista signifique perda do direito de discutir judicialmente os atos societários.”27

7. No que toca às duas últimas hipóteses da lei, diverge a doutrina quanto a natureza dos conflitos ligados a aprovação por acionista de matérias que “puderem beneficiá-lo de modo particular” ou “tiver interesse conflitante com o da companhia.”

Tais matérias importam em conflito formal ou substancial?

Modesto Carvalhosa defende tese minoritária que entende ser de cunho genérico o conceito de conflito e, por essa razão, todas as hipóteses lançadas na lei redundam em conflito formal.

Para Comparato e outros tantos, as duas primeiras hipóteses (i.e. laudo de avaliação e contas da administração) e a terceira (i.e. matéria que possa beneficiar o acionista de modo particular) são de caráter formal. Prevalece, nesses casos, o princípio “nemo iudex in causa propria”. 28

Para outros, como Luis Antônio Campos, somente às duas primeiras matérias aplica-se o caráter formal. Nas duas últimas (i.e. matéria que possa beneficiar o acionista de modo particular ou que tiver interesse conflitante com o da companhia) a verificação de conflito se faz ex post, por ser de natureza substancial.29

Em outras palavras, o eventual conflito não prejudica o exercício do direito de voto pelo acionista, submetendo-se a controle posteriori pelo Judiciário. A análise do conflito faz-se caso a caso, após a deliberação assemblear, devidamente computado o voto proferido pelo acionista em foco.

Para essa corrente, as duas últimas hipóteses não cuidam de impedimento a priori ou presuntivo. A liberdade de voto é regra societária suprema.

A mera aparência de conflito não tem o dom de impedir o exercício de direito essencial do acionista.

Lealdade é dever imperativo no exercício do voto e, assim, não se deve presumir que a existência de benefício ou interesse na aprovação da matéria induzirá o acionista a violá-lo, em proveito próprio.

A violação ao dever de lealdade não se presume; averígua-se posteriormente ao exercício do voto.

O benefício da dúvida é do acionista. Cabe a ele avaliar se irá prestigiar o equilíbrio e a ética ou privilegiar interesse egoísta e particular.

O conflito será presuntivo, única e exclusivamente, se a contraposição de interesses – companhia/acionista – for estridentemente inconciliável. Quando o atendimento a um interesse resta, necessariamente, em prejuízo inexorável do outro.

Nos termos do voto do Min. Aldir Passarinho Junior, “o conflito entre interesses de determinados acionistas e a empresa tem que ser absolutamente estridente … Não existindo um interesse estritamente de um acionista em relação à própria empresa, não há razão para se afastar da votação o acionista, no caso o majoritário, ficando muito difícil de se gerir uma sociedade, porque a todo momento se poderá interpretar que tal ou qual atitude deste acionista estaria ou não colidindo com o interesse daquele, quando é ele, por ter a maioria do capital, quem toma as decisões.”30

Em suma, a maioria doutrinária acata a natureza formal para os dois primeiros casos elencados pelo legislador no § 1º, do art. 115 e o caráter substancial da quarta hipótese. Diverge, notadamente, quanto ao impedimento na aprovação de matéria que possa beneficiar o acionista de modo particular, que, para alguns, afasta, a priori, o exercício do voto pelo interessado, enquanto para outros, só vedaria o direito de voto se tal exercício sacrificasse, inexoravelmente, o interesse da companhia e, assim não sendo, o controle da legalidade do voto há de ser feito a posteriori, em sede judicial.

5.8. Havendo conflito, mas não sendo o voto determinante para aprovação da matéria assemblear, a deliberação mantém-se válida e eficaz. Essa é a opinião que une a maioria esmagadora da doutrina.

Tullio Ascarelli 31 já afirmava que, os vícios do voto devem ser considerados, separadamente, dos vícios da deliberação.

Os vícios do voto não maculam a deliberação dos acionistas, caso não se traduza em fator relevante na apuração da maioria votante.

A mudança de rumo na deliberação só se mostra operante se a nulidade do voto for decisiva na alternância majoritária.

VI. Ações de Responsabilidade Civil

1. Os atos ilícitos do controlador podem ser combatidos através de medida que vise à anulação da deliberação ou a reparação civil pelos danos causados.

Tais ações podem ser cumuladas; contudo, os prazos prescricionais divergem, sendo de dois anos para a propositura da ação de nulidade e de três anos para a de responsabilidade civil.

Por outro lado, se o controlador agia na qualidade de administrador, este também poderá responder por perdas e danos, juntamente com os demais administradores e fiscais que com ele forem coniventes, negligenciarem na descoberta do ilícito ou deixarem de agir para impedir a sua prática, por força da solidariedade legal prevista no art. 158 da Lei das S.A.

2. Interessante realçar que as ações antes mencionadas poderão vir a ser debatidas em sede de arbitragem, haja vista a introdução de dispositivo no art. 109 da Lei das S.A., permitindo o uso do juízo arbitral para dirimir as questões envolvendo o acionista controlador e os minoritários e a companhia e os acionistas.

A sujeição do administrador ou fiscal à arbitragem depende, regra geral, de prévia concordância destes, exceto circunstâncias específicas que autorizem sua imediata sujeição ao rito arbitral.

Notas

 

(1) Palestra proferida na Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ, em 12.7.2004.

 

(2) A falta de interesse do minoritário no investimento acionário era explicada. A manutenção dos lucros sociais na própria companhia e a reduzida distribuição de dividendos era uma constante. A realidade econômica-financeira da empresa era desconhecida dos investidores não-controladores. Enfim, a irresponsabilidade da maioria grassava no seio das sociedades, confundindo suas riquezas com as de seu patrimônio pessoal.

 

(3) O artigo 171, II da Constituição Federal (revogado pela Emenda Constitucional nº 6/95) adotou o mesmo conceito para definir controle nacional: “Empresa brasileira de capital nacional é aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta … entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício de fato e de direito do poder decisório para gerir as suas atividades.”

 

(4) Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S/A. v. II, 2ª ed., Renovar, Rio de Janeiro, p. 238.

 

(5) Essa definição do conceito de permanente foi encampada pela doutrina e pela CVM a partir da Resolução nº 401, de 22/12/1976, do Banco Central do Brasil.

 

(6) Dado que a sociedade anônima é, eminentemente, e por força legal, de fins lucrativos, por certo esse é outro objetivo que há de ser observado pelo controlador. A jurisprudência confirma essa assertiva ao admitir a dissolução de sociedade que há anos não é lucrativa.

 

(7) Cf. Fábio Konder Comparato, “Estado, Empresa e Função Social”, RT 732/38-46.

 

(8) “Direito Empresarial – Estudos e Pareceres”, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990, p.79.

 

(9) Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, “A Lei das S.A.”, op. cit., p. 234-236.

 

(10) “Controle Externo das Companhias”, in Revista de Direito Mercantil, 44/75.

 

(11) Parecer sobre a Proposta da Anatel Regulamento de Apuração de Controle e Transferência de Controle em Empresas Prestadoras de Telecomunicações, de 04.01.99.

 

(12) Alienação do Poder de Controle Acionário, Saraiva, São Paulo, 1995, pg. 14.

 

(13) Ibidem, p. 15.

 

(14) Os controladores da companhia Fruehauf emitiram ordem para que sua subsidiária Fruehauf-France não cumprisse contrato com o principal cliente, o que significava 40% da produção. Frente ao fato de que o inadimplemento pretendido levaria a empresa à ruína, a justiça impôs a execução do contrato e nomeou administrador provisório para esse efeito.

 

(15) STJ, 4ª T, Resp. 784-RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, 24.10.89, v.u., D.J. 20.11.89, Docas S/A.

 

(16) STJ, Resp. 113.446, 1ª Turma, RTJ 126/754.

 

(17) STJ, 4ª T, Resp. 784-RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, 24.10.89, v.u., D.J. 20.11.89, p. 17986.

 

(18) Fran Martins, Comentários à Lei das S.A., Forense, São Paulo, 1985, p.256.

 

(19) STJ, 4ª T. Resp. 784 – RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, 24.10.89, v.u.,D.J. 20.11.89, Docas S.A.

 

(20) RE nº 113.446/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, 14.10.88. Nelson Eizirik, Sociedades Anônimas – Jurisprudência, Rio de Janeiro, Renovar, 1955. P. 113.

 

(21) Resp. nº 10836/SP, Rel. Min. Cláudio Santos, j. 4.2.1992. Ibidem, p.157.

 

(22) Embargos Infringentes nº 29481-1 (SP/1995). Ibidem, 1995. p. 89.

 

(23) Para Comparato, o abuso de voto da minoria se configura de forma comissiva; não pela falta de uso e sim pelo mau uso do voto. Cf. Comparato, Fábio Konder. Direito Empresarial – Estudos e Pareceres, Saraiva, São Paulo:1990, p.86.

 

(24) Apelação Cível nº 265.694-1/SP – Rel. Min. Maurício Vidigal, 01.10.96, Nelson Eizirik, op.cit, p.35.

 

(25) Ap. Cível nº 263.964-1– TJ/SP – São Paulo, Rel. Min. Maurício Vidigal, 01.10.96. Nelson Eizirik, op.cit., p.35

 

(26) cf. Luiza Rangel de Moraes, Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, ano 4, nº II, Jan/Março 2001, p. 283.

(27) Decisão referida na nota 25 acima. (Ap. Cível 263.694-1).

 

(28) Inquérito Administrativo CVM nº TA/RJ 2001/4977- Revista de Direito Mercantil nº 125, ano XLI, nova série, jan/março 2002, p. 151/152.

 

(29) Decisão referida na nota 28 acima.

 

(30) Resp. n. 131.300 – RS (Rcte: Ponta Funda Part. E Admst. S/A; Recdas.: Varig S.A. e Fundação Ruben Berta). Nelson Eizirik, op.cit. p.28.

 

(31) “Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado”, Saraiva e Cia., 1945, p.415.

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